sexta-feira, abril 28, 2006

Meu ruído de alma cala

Meu ruído de alma cala

Meu ruído de alma cala.
E aperto a mão no peito,
Porque sob o efeito
Da arte que faz trejeito,
O que é de Cristo fala.

Cega, porca, lixo
Da vida que n'alma tem,
Esta criança vem.
Que Deus é que do além
Teve este mau capricho?

sexta-feira, abril 21, 2006

Para ser grande, sê inteiro: nada

Para ser grande, sê inteiro: nada (Ricardo Reis, Odes 14-2-1933)

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

quarta-feira, abril 19, 2006

Pierrot Bêbado

Pierrot Bêbado (Cancioneiro)

Nas ruas da feira,
Da feira deserta,
Só a lua cheia
Branqueia e clareia
As ruas da feira
Na noite entreaberta.

Só a lua alva
Branqueia e clareia
A paisagem calva
De abandono e alva
Alegria alheia.

Bêbada branqueia
Como pela areia
Nas ruas da feira,
Da feira deserta,
Na noite já cheia
De sombra entreaberta.

A lua branqueia
Nas ruas da feira
Deserta e incerta...

Categoria: xrtttl

sábado, abril 15, 2006

Mas o hóspede inconvidado

Mas o hóspede inconvidado


Mas o hóspede inconvidado
Que mora no meu destino,
Que não sei como é chegado,
Nem de que honras é dino.
Constrange meu ser de casa
A adaptações de disfarce.

Categoria: soltos

sexta-feira, abril 07, 2006

O Pastor Amoroso

O Pastor Amoroso (O Pastor Amoroso - Alberto Caeiro)

O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe pira tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu.
Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem,
estão presentes.
(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco
nos pulmões)
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor,
uma liberdade
no peito.

Categoria: xrttac

terça-feira, abril 04, 2006

Se eu me sentir sono

Se eu me sentir sono,

Se eu me sentir sono,
E quiser dormir,
Naquele abandono
Que é o não sentir,

Quero que aconteça
Quando eu estiver
Pousando a cabeça,
Não num chão qualquer,

Mas onde sob ramos
Uma árvore faz
A sombra em que bebamos,
A sombra da paz.

Poema publicado em 20 de Abril de 1934.

Categoria: soltos

segunda-feira, abril 03, 2006

O que é a vida e o que é morte

O que é vida e o que é morte

O que é a vida e o que é morte
Ninguém sabe ou saberá
Aqui onde a vida e a sorte
Movem as cousas que há.

Mas, seja o que for o enigma
De haver qualquer cousa aqui,
Terá de mim próprio o estigma
Da sombra em que eu o vivi.

Categoria: Poemas soltos

sábado, abril 01, 2006

Abat-Jour

Abat-Jour (Cancioneiro)

A lâmpada acesa
(Outrem a acendeu)
Baixa uma beleza

Sobre o chão que é meu.
No quarto deserto
Salvo o meu sonhar,
Faz no chão incerto
Um círculo a ondear.

E entre a sombra e a luz
Que oscila no chão
Meu sonho conduz
Minha inatenção.

Bem sei ... Era dia
E longe de aqui...
Quanto me sorria
O que nunca vi!

E no quarto silente
Com a luz a ondear
Deixei vagamente
Até de sonhar...

Categoria: xrtttl